MINHA VÓ CANOA, MINHA VÓ RIO

"Menina vem sem palavra." Eu ouvi, depois vi. Vi uma mulher de cabelos longos, meio pretos e meio brancos. Grisalhos. Era tarde da madrugada ou era cedo, começo da manhã? Não sei. Mas levantei e segui aquela Senhora magra e pequena, mas bonita. Bonita de forte e séria. Lá fora nos encontramos com outra Senhora. Pequena também, séria também. Forte, me pareceu. Disse em sussurro: "é cedo, mas já tem gente acordada, vamos sem dar pio nenhum." Eu não sabia o que fazer. Por dois segundos quis trancar a porta, mas quando dei por mim já estava na rua, depois numa canoa, depois num rio, depois num lugar que não identifiquei. Havia muita gente deitada na terra, era uma mata? Uma floresta? Não sei, estava ainda a querer identificar as mulheres que sumiram. De repente um homem pequeno, do meu tamanho (1.50) me dá uma cuia e uma panela de barro e pede para distribuir aquela água às pessoas. Eu assenti. Havia gente de todas as etnias. Eram pessoas. Era gente. Era um mundo de gente, nas palavras de minha mãe, que apareceu de longe a acenar. Acenei. Ela estava a levar uma criança no colo, não sei para que lado foi. Quis gritar "mainha, mainha", mas não o fiz. Segui distribuindo aquela água que mudava de cor quando botava na cuia. Ficava verde cristalina. Do nada apareceu uma onça castanha. Recordei as histórias do meu pai a dizer sobre onças nas terras do meu avô (seu pai). Bateu saudade... Lembrei que às vezes minha mãe dizia que ele estava exagerando (eu intimamente também pensava ser exagero e me ria). Ele ficava um tanto zangado e perguntava: você estava lá Regina? A gente se ria de canto de boca. Mas tinha que ser muito cuidadosamente porque podia cair na cinta. rs Moça pequena, tem mais remédio aqui. Acorda. Era o homem pequeno, vestido de cordão a me chamar atenção. Mais água verde cristalina e mais gente, todas as etnias. Gente. Segui a distribuir a "água" e encontrei muitas pessoas que também estavam já a distribuir a água. Pessoas que estavam deitadas, agora estavam a distribuir aquela essência à outras pessoas. Fiquei alegre porque só nesse momento lembrei da realidade, dessa experiência atual do Planeta e me ocorreu de aquela água vir a ser um remédio: por que não, a cura? Do nada reapareceram as Senhorinhas e me chamaram para retornar. Seguimos uma trilha de flores que não existem, nunca vi. As Senhorinhas a conversarem numa Língua que não conseguia entender palavra. A de cabelos muito longos, meio pretos e meio brancos me chamou por um nome engraçado "auí nerevi" e entendi que ela me pedia para andar mais rápido pelos gestos dos braços. A outra Senhorinha se ria porque caí num escorrego brabo que dei. Essa Senhorinha se vestia com um vestido tipo linhão rústico, tipo estopa. Carregava no pescoço um colar com uma chave grande, parecia de cobre, não vi direito. As duas me protegiam tão amorosamente que me lembraram família. Recordaram os braços de minha mãe, de meu pai. Quando senti assim, a mais indígena me olhou muito carinhosamente e olhou para a de vestido de saco de estopa. Agora o vestido cintilava e as duas estavam a me abraçar num gesto de proteção contra uma chuva muito forte. "Chegamos" disse a Senhorinha do colar de chave de cobre. Nessa hora eu nem queria mais chegar, eu queria voltar com as duas... Porque só naquele instante eu vi nitidamente que eram minhas avós: materna e paterna. Era quase dia... Elas desapareceram: a canoa e o rio... Acordei com a chuva a cair forte lá fora e deu para ver um raio enorme. Acho que isso quer dizer esperança... (Solineide Maria - Luanda, 19 de Abril de 2020)

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