Toda leitura tem preço


Toda leitura tem preço

ou 

O preço da leitura nA Menina que roubava livros.



Solineide Maria de Oliveira

Aluna da UESC - Bolsista CNPq



Professora Dra. Patrícia Pina

Orientadora



Sugere-se que cultura e leitura estão caminhando juntas há algum tempo – senão, quase todo o tempo. A vida parece tomar melhor significação quando vira palavra escrita: Liesel, protagonista do romance A Menina que roubava livros sugere saber disso.

Ser uma das linguagens com que é possível compor o mundo bastaria.

Bastaria? Não se pode concluir definitivamente. A evolução do ser humano supõe estar imbricada na evolução da escrita. E no que diz respeito a quem sabe mais, o homem ou o livro: existiriam controvérsias.

Quando lemos a narrativa de Marcos Zusak, nos deparamos com uma menina que não estaria qualificada para a escrita: “Desde seu aparecimento, a escrita exigiu profissionais qualificados, de que são exemplares os escribas egípcios, figuras que, apesar da origem plebéia e do anonimato em que foram mantidos, gozavam de privilégios”. (LAJOLO, Marisa; ZILBERMAN Regina, 2001, p. 25)

Liesel, nossa pequena escritora, ainda não sabia ler, nem escrever. No entanto, tal infante escreve sua própria história, e sugere ser tão boa, que a Morte gosta, se emociona, guarda e eterniza. Boa autora mesmo, dir-se-ia: conseguiu seduzir a Morte para sua leitora principal.

A construção de uma sociedade, logo de pessoas, tem muito mais a ver com leitura do que se supõe. Seu aterramento igualmente. Não à toa, Liesel procura construir sua própria leitura – sozinha. Escolhendo, tateando as palavras – improvisando possíveis entendimentos, afinal, toda leitura tem preço e

Tudo se traduz, transcreve, simplifica, banaliza, complica, recria, transcria ou transfigura. Nada permanece a primeira e única visão, nem para o autor, nem para o leitor. Cada leitura, assim como cada escritura, pode ser, simultaneamente, tradução e recriação. Quem lê, assim como quem escreve, está simultânea e necessariamente traduzindo, buscando significados, recorrendo a significantes, em busca dos sons e sentidos, ritmos e formas, cores e vibrações.

(LAJOLO, Marisa – ZILBERMAN – Regina: 2001: p. 11)

Talvez por isso, Liesel escreva sua própria história, porque inconscientemente ou magicamente já o sabia. E escreve com tinta, folhas reaproveitadas de um livro que não lhe serviria. Um livro que guardava um discurso do qual ela não consagraria jamais.

Necessário que “se sinta o gosto amargo das perguntas” (ZUSAK, 2007, p. 338) melhor ainda, quando tais indagações são fruto de nossas próprias opções – ou falta delas.

Faz-se necessário também saber que nem toda leitura é doce resposta. Às vezes – ou muitas vezes – é número vencido, “é grupo de trabalhadores envolvidos na produção de livros” (LAJOLO, Marisa; ZILBERMAN Regina, 2001, p. 26). Talvez, poderíamos expor à pequena leitora Liesel, que tudo tem preço. Saiba cara menina escritora, que o livro percorreu longo caminho até encontrá-la na guerra daquele pulha. Muitos outros idiotas existiram:

Na Inglaterra, por exemplo, a rainha Maria Tudor, em 1557, concedeu, por intermédio de carta-patente, a exclusividade de impressão aos membros da Stationers’ Company, que, conforme Roger E. Schechhter, “dependiam do favor da Coroa inglesa para sua existência, de modo que somente publicavam materiais que não ofendiam as autoridades reais” (...) (LAJOLO, Marisa – ZILBERMAN – Regina, 2001: p. 26)

Até você chegar a ler querida menina Liesel, aí nesse outro mundo terrível, já muito livro teria sido queimado. Outros foram escritos na intenção de se eternizarem cânones. Alguns o foram, outros não, mas quem disse que apenas os canônicos são boa literatura? Saiba que até você, pequena Liesel, saber “ler aquele livro horroroso das sepulturas, de olhos fechados” (ZUSAK, 2007, p.52):

Na França do século XVII os escritores não tinham independência financeira, tendo de recorrer ao clientelismo ou ao mecenato. Alain Viala anota que “o fenômeno da clientela é banal no século XVII e em redor de personagens ricas e poderosas, reúnem-se indivíduos ou grupos que se colocam a seu serviço em troca de diversas vantagens”. (LAJOLO, Marisa – ZILBERMAN – Regina, 2001: p.34)

Esta infante corajosa, roubadora de livros e encantadora da Morte conseguiu bastante. Conseguiu aprender a ler, escrever, produzir seu próprio texto (discurso), tudo isso ou sozinha, ou com a ajuda daqueles que realmente a amavam. Antes “não apenas o universo étnico ficava limitado: os livreiros também eram penalizados quando divulgavam gêneros proibidos” (LAJOLO, Marisa; ZILBERMAN, Regina, 2001, p. 37).

Sempre ocorreram, no entanto, os que escrevem boas obras e aqueles que não o fazem (a exemplo do Mein Kampf). Outros escrevem obras divinais, que agradam inclusive a leitora Morte. No mundo, parece, sempre houve dessas e de outras.

Sobre o autor, o que verificamos é que em geral esteve na mão de outros, “o reconhecimento de que o autor do texto é o dono da obra e que esta propriedade, tal como qualquer outro objeto de valor, pode ser transmitido a outrem tem conseqüências dignas de nota”. (LAJOLO, Marisa; ZILBERMAN, Regina, 2001, p. 59).

Os poetas também deram preço à suas poesias, “na exposição franca e direta do interesse do poeta em ganhar dinheiro, quebra-se um dos mitos da tradição literária ocidental, ruptura responsável pelo bom humor e originalidade dos versos”. (LAJOLO, Marisa; ZILBERMAN, Regina, 2001, p. 79).

Dessa forma, o ideal seria imitar a pequena Liesel: escolher nossas leituras, ler, mas cautelosamente, porque “as palavras pesam muito” (ZUSAK, 2007, p.368) e um livro, você sabe, é uma obra que pode ser “tão medonha e tão gloriosa, e ter palavras e histórias tão amaldiçoadas e tão brilhantes”. (ZUSAK, 2007, p.382)



LAJOLO Marisa; ZILBERMAN Regina. O preço da leitura: Leis e números por detrás das letras. 1ª edição. Rio de Janeiro: Ática, 2001.




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