Dormir e roubar é só começar...

Não estava muito bem. Trabalhando muito e ganhando mal, comendo apressadamente e também mal, acabou por ter problemas de sonolência. Foi isso que o prejudicou naquele dia, quando, sem querer, dormiu em serviço. Saiu tarde, como sempre, porque seus horários de trabalho sempre foram organizados pelas oportunidades que surgiam.
Levantou-se e vestiu um casaco de marca (recém-adquirido...) de um transeunte incauto. Organizou sua agenda, mentalmente, e saiu. Sabia o endereço do próximo serviço; era perto de onde se abrigava. Avistou todos se recolherem e seguiu para o trampo. Abriu à força a porta do carro com bastante facilidade, anos de experiência lhe outorgaram tal capacidade, que considerava muito útil. Utilíssima... 
Encontrou um notebook quase novo, enfiou na sacola (habilmente preparada para apanhar os objetos de valor). Leu a agenda do dono do carro e descobriu tratar-se de um médico. “Interessante”... Pensou... Se precisasse um dia de cardiologista, teria um número. Escova de cabelo ele não precisava: careca desde os vinte e oito anos, agora com quarenta e oito, não tinha mais por que se preocupar com esse detalhe (sorriu consigo). Nesse momento se deu conta de que deveras estava cansado, pois trabalhava sem férias há vinte longos anos. 
“Claro!” Matou a charada, precisava tirar umas férias, descansar por um mês ou dois... Ninguém aguenta trabalhar sem parar por tanto tempo, é desumano... Muitos anos de luta... Muitas noites perdidas por tão pouco. Nem tinha (ainda) casa própria, não tinha também uma família. Fazia falta uma família, uma “nega” esperando para cafunés e conversas depois de um dia exaustivo de trabalho... Ligou o som e verificou que era de boa marca e sonoridade. 
Ouviu uma canção bonita, gostava do grupo Raça Negra e decidiu ouvir a canção até o fim, antes de depositá-lo na sacola de achados e perdidos (era assim que chamava sua sacola). “Estou mal/ vem me consolar” dizia os versos da composição. Lembrou-se de Rosenilda, sua recente ex-namorada e lembrou-se da última noite em que dormiram juntos, abraçados de conchinha, para, no dia seguinte encontrá-la com tanta raiva dele, só por ter saído com a periguete da Rosilda... “Poxa... Que mancada” - bocejou. Águas passadas... 
Recostou-se se consolando... Ah, mas que maravilha abraça-la de novo, mãos gostosas, corpo perfeito (ele prefere as gordinhas). “Vem me consolar... Estou mal. Preciso de você”. E todos os beijos foram dados naquela volúpia carnal, naquele barraco que cheirava a desejo. “Maravilhosa!” Ele gritava apertando seus braços, suas pernas. “Oh nega não vai mais embora... Fica comigo pra sempre!” “- Acorda vagabundo!!” Despertou atordoado, ainda tentando reter aquele corpo maravilhoso de Rosenilda... Havia sido vencido pelo sono, em pleno trabalho. 
O dono do carro chamou a polícia às 7:00 da manhã, assim que viu “Serjão ”dormindo profundamente no banco de couro do seu automóvel, quando iria para o hospital onde trabalhava há vinte longos anos, realizar uma cirurgia coronária marcada para 08:00 da manhã, num paciente que o aguardava, internado há dois dias. 
A polícia teve trabalho de conseguir o depoimento do meliante. “Serjão” estava sonolento ainda, cansado, depois de tantos anos de trabalho, sem um período mínimo de férias... O delegado pergunta bastante curioso, ao operário invigilante: 
- Dormiu em serviço hein rapaz... Começou a roubar quando?
E “Serjão” responde ainda entorpecido, mas com ironia: 
- É "Dôtor", o senhor sabe né... Dormir e roubar é só começar...

Solineide Maria de Oliveira. Agosto de 2013 (Crônica escrita em sala de aula na Disciplina de produção textual como incentivo aos alunos do OITAVO ano, provando-os que é possível SIM escrever, a partir de sugestão de produção).

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