AMIGÃO

Um cachorro sujo e velho parou perto de mim. Olhou-me. 
Parecia que falava sem palavras: olha só que situação a minha... Meu primeiro pensamento foi o de sair de perto dele, afinal, estava limpa (será?) e meu destino era o de uma entrevista para emprego. Já pensou, chegar fétida e com semblante melancólico? Tinha de chegar lá, com ar de quem vira um passarinho colorido: cheia de vitalidade e disposição para crer que “todos somos iguais perante as oportunidades”... 
Não sei bem o que me fez ficar ali parada perto daquele ser que, ao que parecia, esperava a morte. Doente e velho, cansado e só. Sua vida tinha sido boa antes da doença, pois portava uma coleira onde se podia ler: AMIGÃO. Era seu nome? 
As letras eram bonitas, caracteres que pareciam esboçados para ele. Estrelas rodeavam o nome e, no final, tinha uma frase em letras menores dentro de um pequeno coração que dizia: para sempre. Quando li o nome e fiz a investigação do resto da coleira, quedei-me triste e sorumbática. Assim também se faz com os humanos... O cão me olhou como perguntando: precisava chover mais? Em verdade empacara ali para passar a chuva insistente e, no momento em que parecia cessar, veio mais torrencial. 
Já havia esquecido a entrevista empregatícia e nem sabia se acreditava em “amizade”. Nem de bicho para bicho, nem de homem para bicho. Quedei-me melancólica...
A chuva insistia e, em dado momento, aquele cão começou a tossir forte. Primeiro foi um “atchim” descomunal, depois ocorreu uma sucessão deles e, ao cabo o pobre abandonado, já não conseguia ficar de pé. Abateu-se deitado, com os olhos extremamente afligidos (procurando alguma fisionomia familiar?). Estávamos apenas nós dois no ponto de ônibus. Ele me olhou como quem dissesse: vela-me na minha morte? Meu Deus! Comecei a cantar a Oração de São Francisco numa carência de voz que parecia teatral, mas não era... 
Não sei se por estar muito impressionada com o sofrimento daquela criatura, ou se por acreditar que São Francisco é o Deus mais humano entre os Santos, tanto, que ampara até os bichos, percebi o cão começar a respirar fundo. Respiração de quem queria agarrar novamente o suspiro inicial da vida. Aquele que engrena toda ela... 
Lembrei de minha mãe, que tem uma simpatia descomunal pelos bichos sofredores. Pedi à Santa Teresa que apoiasse aquela criatura (ela era poetisa), os poetas entendem desses momentos (e de outros)... Solicitei a assistência de Chico Xavier, ele que amava os bichos e os tinha como irmãos menores. 
Enquanto improvisava preces por aquele ser, não me dei conta de que já o estava acariciando a cara: alisando as orelhas caídas e cobrindo-lhe o corpo cansado e doente com um jornal (que havia comprado para ler enquanto esperava ser chamada na tal entrevista). Ele me olhou com olhos em lágrimas – juro – e como quem parecia dizer muito obrigada, sorriu com suas feições de cão, durante o seu último suspiro.


Solineide Maria de Oliveira
São Paulo - Vila Guarani - 2002

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