MORTE AO CONTRÁRIO


Ficar alegre com a morte de alguém é triste, mas fiquei. Não com a morte da pessoa, que deixou filhos (ingratos, mas filhos), marido ingrato, mas marido é agregado, então não é tão surpreendente, e deixou mãe. De todos, sua mãe é que sentirá orfandade, afinal, viveu oitenta anos para ver sua filha morrer.
Pensando friamente, a vida é feia, sombria e ingrata. No entanto, se percebermos a poesia que há (houve) de essa filha vir de longe para cuidar da mãe adoentada por sequela de um derrame, e, acabar falecendo perto de sua mãezinha de cabelos brancos, a gente agradece a Deus (para aqueles que acreditam em Deus). Para os que não creem em Deus, no mínimo, devem perceber que houve algo de metafísico nesse engenho da fatalidade.
Se assim não fosse, essa mulher teria morrido perto dos que não a consideravam, vejam vocês, eles nem quiseram vir para o enterro... Um alegou não ter dinheiro, o outro, alegou tê-la avisado muitas vezes sobre seus desmazelos com a saúde frágil... 
Ter vindo cuidar de sua mãe idosa e adoentada, foi uma espécie de “presente Divino”. É como se Deus tivesse lhe dito “Vai minha filha, morrer perto de sua mãezinha que lhe ama”.
O choro dessa mãe na madrugada fria acordou a vizinha em frente, depois, a vizinha da esquina foi avisada, em seguid minha mãe, e, de repente, estavam todas aquelas mulheres, vizinhas remotas, reunidas no passeio em frente de sua casa. Também eu fui ter com elas, aquele momento solidário. 
Senti tristeza, mas alegria, porque ensimesmada fiquei pensando essas coisas que narro agora, simploriamente, no corpo desta folha branca; branca como brancos são os cabelos de Nenzinha, minha antiquíssima vizinha.
Pensei também que essa tenha sido uma morte ao contrário. Pois que esperamos todos, sermos nós (mães e pais), os que viajem para "o além", antes dos filhos. No entanto, a vida é o mistério de não entendermos o que muitas vezes se apresenta muito óbvio, ou justo. Ainda que temporariamente estejamos com olhos e ouvidos fechados...
Ficar alegre com a morte de alguém é triste e não fiquei, entendam. Fiquei confortada em saber que o corpo de uma filha foi velado pela mãe, e, antes disso, foi cuidado com amor, por sua mãezinha de cabelos alvos na altura de seus oitenta e tantos anos. 
Um provérbio conhecido diz que “Deus escreve certo por linhas tortas”. Eu penso que ele não precise de linhas nem margens para desenhar o amor e a morte. Mesmo que pareça uma morte ao contrário.

Para a vizinha mais antiga da Rua Bela Vista no Bairro Mangabinha neste momento tão difícil...
Para Nenzinha, com carinho.
De "minha moça" como me chama afetivamente por tantos anos...

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