Carta

Itabuna, 09 de março de 2010.

Professora Marialda:

Ao falar o que mais me tocou com relação à Língua Portuguesa nos anos de escola, não podia deixar de fora um lado importante dela, que, em geral, na contemporaneidade, parece sofrer muito preconceito: meus primeiros anos de escola. Esses anos, que vão da primeira à quarta série, são hoje pertencentes ao Ensino Básico.
Naquele tempo, as escolas de maternal até o pré-primário eram chamadas de escolinhas. Eu e meu irmão frequentamos juntos durante seis meses apenas, tempo em que meus pais puderam arcar com tal despesa. Mas não foi nada demais ficar pouco tempo ali, já que minha mãe, com apenas sua quarta série do primeiro grau de escola rural, havia nos alfabetizado.
Conhecíamos as letras do alfabeto e os números. Conseguíamos escrever nossos nomes e ler algumas palavras. E mesmo não tendo decorado a tabuada, já conseguíamos resolver as operações mais elementares.
Foi assim com os seis filhos. Minha mãe alfabetizou todos em casa. De modo que fica difícil entender como hoje, pais – alguns até “doutores” – podem ter filhos tão dispersos e, muitas vezes, avessos à educação, atividades de escola, caderno, caneta, lápis e borracha, livros. Não sei se exatamente qual a ordem.
Achava minha mãe muito sábia, porque a maneira como trouxe a cartilha para nós e nos fez codificar cada palavra, depois pequenas palavras, era, para mim, algo de alto nível.
Sua estratégia de nos ensinar resumia-se a um pedaço de papel, geralmente aquele de embrulho, papel-madeira de enrolar bisnaga de pão (popularmente conhecida como bengala) ou outro qualquer quando não havia aquele, que rapidamente ela obtinha nas gavetas do armário da cozinha. O papel era furado ao meio, e ela o arrastava nas letras, tapando o desenho do bicho ou da coisa que, na cartilha, indicava a letra, e, em seguida, perguntava-nos “que letra é essa? E essa”?
Lógico que, quando chegávamos ao nível do pedaço de papel fendido ao meio para a codificação das letras, já havia repetido conosco, inúmeras vezes, a cartilha todinha. Pois sabia, do alto de sua sabedoria de mãe alfabetizadora, que a repetição nesses casos era indispensável.
Falar de minha escolaridade, sem falar dessa parte importante da alfabetização que tive por parte de minha mãe, seria não alcançar o que, para mim, significaria achar o caminho, o encontro com as palavras, com a significação da escola e tudo o mais. Resumindo: um enorme encantamento.
Quando cheguei à Escola Agrupada Ozanam, para a primeira serie do primeiro grau, a professora Celeste notou algo diferente em mim. Percebeu que eu já detinha um conhecimento maior que o dos colegas. Observou que terminava rapidamente as atividades, e que o dever de casa, muitas vezes, nem chegava a ir para casa. Então, decidiu fazer uma sabatina e prova escrita comigo e, em seguida, transferiu-me para a segunda série.
Foi uma experiência inesquecível: ela pegou minha mão e disse: você hoje vai para a outra sala. A outra sala era maior e, embora os alunos tenham me chamado baixinho de xereta, não liguei.
Gostava mesmo, muito, da professora, pois, apesar da maneira firme com que me tratava, era atenciosa, solícita, e, isso, em minha opinião, era característica importante para uma professora. Aliás, era assim com todos os seus alunos, a implicância deles comigo durou pouco tempo.
Professora Celeste passava atividades diárias para casa. Recheava os cadernos com todo tipo delas: separação de sílabas, descoberta de palavras e sua escrita nos quadros, formação de palavras e interpretação de textos que ela copiava de outros livros e mimeografava para nós. Foi dessa forma que conheci Carlos Drummond de Andrade. Naquele tempo, achar palavras escondidas e ler Drummond quase significaram a mesma coisa.
Minha professora, naqueles saudosos anos, já era o que chamam hoje de professor leitor. E melhor, trazia para a sala as suas leituras, escolhia a dedo, suponho, pois, éramos suburbanos, não tínhamos acesso a muita leitura de livros. Penso que ela lia, mas a emoção que se fazia depois da leitura desse ou daquele texto é que decidia: esse eu posso levar para meus alunos.
Da primeira à quarta série foi assim, um achamento, um encantamento, um sofrer com a matemática, com artigos indefinidos, com o enigma que eram (são) os substantivos, suas classificações e gêneros... Normas e regras...
Passar para a quinta série foi um desespero, ao mesmo tempo uma inquietação boa. O que viria? Deixar professora Celeste foi o mais difícil. Mas a vida segue e foi e vai ser assim para sempre.
Não era mais uma (a “minha”) professora. Agora eram várias (os) e, de certa maneira, nenhum (a)... Mas a vida teria de seguir. Havia de adquirir outras informações, o mundo da escola com mais de quatro salas, mais de uma professora e mais de um horário. Com o tempo pude vencer isso tudo. O que não consegui ultrapassar foi a diferença com que a professora de Língua Portuguesa lidava com seu ofício.
Foram muitos dias escrevendo cópias, muitas tardes perdidas, muita desilusão, muito entrave. Ela, muito indiferente, tomava café com rosquinha na Sala dos Professores, via a revista AVON, comprava calcinha, sutiã, cangas, requeijão, mel de garrafa e tudo o mais que alguma mocinha ou senhora vendedora, arranjada por algum professor da turma dela, levasse, para tais figuras verem, escolherem e contraírem.
Não sei se meus colegas ficavam felizes. Da minha parte, ficava extremamente triste e preocupada. Triste por notar que aquela professora não conseguia ser um diferencial em nossas vidas; preocupada porque sabia que meus textos seriam marcados por esse travessão.
Não sei dizer de nenhuma atividade marcante nesse período. Lembro de ouvi-la falar sobre análise morfológica, mas era tão de soslaio e sem aviso que, na maioria das vezes, ninguém escutava, creio. Nem redação solicitava. Certamente, também acho, para poupar-se ao trabalho de corrigi-las, já que teria de grifar, sublinhar palavras escritas de maneira inadequada para a gramática normativa, conteúdos diversos, criatividade etc. Passemos...
Na sexta tive a surpresa mais desagradável de minha vida. A professora da quinta série seria a mesma da sexta série... Já pensou? Tudo igual, cópias e leituras em voz alta, interpretações sem comentário por parte dela, nenhum acréscimo. Nada.
Procurei professora Celeste para que me orientasse sobre o que fazer, mas ela havia se aposentado e estava em Salvador. Havia de solucionar aquilo, o que poderia fazer? Não admitiam reclamar de professores na Secretaria. Em minha vida escolar, mais um ano a menos na Língua Portuguesa.
De tal maneira seguíamos. Segui. Debrucei-me, então, nas outras disciplinas, elegi Educação Artística como minha predileta e adotei a saudosa professora Terezinha como minha conselheira em leituras. Foi muito bom, a sexta série decorreu, feito tudo, mas é claro que carregaria essa falta de jeito com acentos e grafias, análises e afins.
Até aqui deu para perceber que o que havia conseguido com Celeste era o que permancia vivo em mim. Minha cara professora do Ensino Básico, aquela que me apresentou o mundo da leitura e da literatura. A que mandava atividades de férias para casa, umas dez folhas mimeografadas, com atividades de gramática e interpretação de textos. Meu Deus, quanto esmero. Ela asseverava que era pra gente não voltar enferrujado.
Professora D’Ajuda não sabe, não lembra, mas foi minha professora na sétima série. Eis uma das dificuldades de minha vida: uma professora do barulho, depois de dois longos anos de total nada em Língua Portuguesa.
Muito empenhada, D’Ajuda fez o que não pôde, revisou muita coisa, mas não dava para revisar tudo, senão, teria de nos colocar a todos na quinta série de novo. Muito corajosa, levou-nos até o fim do ano. Muitos foram para a recuperação, alguns repetiram a série e eu passei de raspão como diziam: arrastando a barriga no chão.
Mas aí a senhora poderia objetar: e por que não estudar em casa? E eu lhe responderia: não dava! Era babá nas horas vagas. Família grande e sem muita condição, trabalhávamos cedo, no que desse/pudesse. E livros eram raros, inclusive os didáticos. Mas não parei de ler, sejam os emprestados por Celeste, sejam, depois, os de Terezinha.
Do oitavo e últimos anos não lembro quem foram meus professores e professoras. Mas creio que nada mais iria mudar a falta de braço, de perna e de pulmão na minha vida devido ao fato de ter sido “aluna de ninguém” na Língua Portuguesa. Dizendo melhor, não recordo nada de extraordinário vindo da parte deles. Porém, pensando melhor, creio ter havido uma, na oitava série, primeiro ano se não me falha a memória. Ela tentou entender como eu escrevia até razoavelmente sem saber direito gramática. Recomendou-me, então, um curso depois de findo o tempo escolar...
E foi o que fiz. Uns dois cursos, li e leio mais, escrevi e ainda escrevo mais um pouco, incluindo cartas. Até hoje, levo a sério essas atividades por me serem prazerosas.
Peço-lhe desculpas por não trazer lembranças mais dignas da Disciplina de Língua Portuguesa nesses anos de Fundamental e Médio.
Como cheguei até aqui? Cursos, leituras, que me estimularam a escrever sempre mais: crônicas, poemas, cartas. Conservo até hoje paixão por textos. Eles, talvez, tenham sido o caminho (sinuoso) pelo qual venho alcançando meus objetivos. Isso, embora em andamento, já me é muito gratificante.

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