LÍGIA...

Não era assim uma crise qualquer, era a crise dos trinta que anunciava muitas tensões e balbuciava perguntas tolas, perguntas rasteiras, perguntas sérias e perguntas seríssimas. Todas sem respostas. Além do mais, havia o desemprego que aconteceu sem mais nem menos. Todo desemprego acontece assim e instala medo e horror em todos aqueles que experimentam sua aparição. Uma aparição desagradável e tamanho único.
Trinta anos e pouca maturidade. Pouco jeito com as coisas, com as pessoas, com a maternidade. Apesar da filha ter completos seis anos de idade. A falta de tato para com decisões e conselhos maternos não era novidade alguma. Talvez, a tal crise tenha chegado em momento oportuno, pois estava mesmo na hora de decidir. Decidir, por exemplo, se queria ou não a cidade de prédios e pessoas se esbarrando em todas as ruas, vielas, pontes ou preferia um pouco menos de prédios e mais de casas. Voltar? Ir para o Japão? Parar por uns tempos? Voltar e recomeçar a partir de alguma sugestão ou a partir de sua própria intuição? Muitas perguntas. Todas sem respostas...
Dizem que a melhor decisão é fazer um movimento. Mover-se é alguma coisa entre o que pode ser feito e o que se tem a fazer num momento de crise. Lógico que existem aqueles casos que pedem silêncio e calma absoluta, mas não era esse o caso. De todas as buscas, a maior delas sem dúvida, é à busca de si mesmo. Dificílimo achar o caminho de si sem o envolvimento necessário com as crises. Talvez, sem tal envolvimento, o encontro nunca aconteça. Agora nem mesmo tais movimentos e envolvimentos garantem o achamento de si mesmo. Complicado não é mesmo? É tudo questão de paciência, leia-se Rilke.
Acender uma luz é alguma coisa entre necessário e mágico. Recorda o momento do nascer das coisas, do desabrochar das idéias e dos encontros. Encontros são um pouco luzes que se ascendem. Pode ser o contrário, mas aí tem de ser muito azarado para que todos os encontros sejam escuridão total. Estou falando de todos os encontros: os amorosos e os diários. Os acidentais e os calculados ansiosamente. Quando caminhamos para encontrar algo, alguma coisa, alguém, sentimos uma vastidão de emoções. Por causa dessa vastidão tamanha ,nos deparamos com a tristeza total, quando o que se esperava encontrar não era bem aquilo, aquela coisa, aquele resultado, aquela pessoa. Eu não sei como se chama isso em Filosofia, mas deve ser um nome bem melancólico.
Em Literatura existem vários, mas tentemos simplificar ao máximo. Sentimentos, emoções e afins, devem ser simplificadas quando escrevemos. Falando Religiosamente o nome disso deve ser falta de Deus. Um Frei disse uma coisa muito bonita quando ela foi visitá-lo num período onde esteve muito angustiada com tanta busca e pouco resultado. Ele lhe disse, que devemos colocar Deus em tudo o que fazemos. Ela perguntou com medo, porque o Frei trazia uma intelectualidade latente: mas Ele já não está em tudo? E o Frei lhe respondeu: mas tem de acreditar que Ele está.
É isso. Devemos acreditar que vamos encontrar. Visualizar o encontro com o que se deseja, o que se quer, aquele ou aquela a quem desejamos encontrar. Isso deve ter nome em Psicologia, mas não me interessa saber qual. Não gosto de nomes. Manuel de Barros disse “que o nome empobrece as coisas”. Se foi opinião do poeta, concordo, se foi conselho, acato.
Aprofundei-me demais em coisas que precisavam mesmo de aprofundamento. Sem esse aprofundamento não seria capaz continuar escrevendo essa história.
Aprofundei-me na vida dessa moça, era preciso. Não podia começar uma história sem o mínimo de apresentação. Aliás, sempre precisamos de alguma apresentação. Ainda que seja panorâmica, a Literatura que disse... Mesmo porque, história sem aprofundamento é igual a amor sem amor. Igual a carinho sem vontade. Igual a casamento sem companheirismo. Existe? Talvez exista, mas não quero saber onde, com quem, nem quando.
Ontem Bete esteve com Lígia.
O nome Lígia foi presente da tia solteirona. A tia, fã de uma com igual nome, do Tom Jobim, que fala de uma moça e tal, e um pino, e um telefonema abortado. Coisas do tipo. A menina em questão, da realidade viva, nasceu com cabelos fartos e pretos. Cresceu ouvindo quase diariamente a história da escolha de seu nome. A tal tia nunca se casou, nunca pariu nada, nem filhos, nem planos. Nem abortou, na mesma ordem. Às vezes (Bete me contou ) que sente que essa tia imprimiu em Lígia um pouco de espectro de sua própria falta de sorte com as coisas. Sobretudo com os relacionamentos. Contribuindo para as infelizes escolhas e desfechos nas histórias amorosas pelas quais Lígia se embrenhava.
Como estava dizendo: ontem Bete esteve com Lígia.
Lígia lhe contou que esteve com aquela pessoa. Aquela, pela qual carregava um bonde há algum tempo. Já contei sobre encontro deles dois? Bete me perguntou. Acho que não, respondi. Animada ela prosseguiu: Então contemos a partir do início.
Bete descreve tudo com minúcias. A gente tem que gostar dela para ouvi-la até o fim... E o fim para Bete não é o fim, ela sempre tem um ar de mistério, um silêncio mudo demais. Não sei ao certo, acho que uma cor que mistura tudo isso. A gente ouve Bete e ela parece que esteve lá, que viu tudo e que participou. É incrível como Bete dá um aspecto melhor às histórias, mesmo que não sejam histórias das quais tenha participado.
Lígia me disse que separou o vestido que aguardava ocasião específica, o cachecol para afastar a crise de garganta e a cara alegre. Aquela cara alegre de encontro. Aquela igual a todas as caras alegres de encontro com o ser por quem se pensa estar apaixonado.
Estava. Estava mesmo apaixonada.
Comprou duas tortas de limão e chocolate, dois sorvetes de maracujá (que acabou esquecendo na sorveteria), um cd que acabou desistindo de presenteá-lo. Tomou a decisão mais acertada de toda a sua decadente vida amorosa-psico-emocio-sentimental. Percebeu em meio ao almoço, que dali não passava. Mas tentava enganar-se, criava imagens, ilusões que tomavam sua cabeça. Enquanto isso, a cada garfada, ele silenciava a imensa indiferença que sentia. Já era alguma coisa, para quem dizia que não acreditava no amor.De repente o silêncio foi interrompido pela pergunta tola:
Você sempre come tão pouco?...
Ele devia saber que sim. Já que notadamente Lígia não passa de uns 45 quilos, distribuídos de forma a não parecer alguém com dificuldade de alimentação diária. Ela respondeu idiotadamente:
Sempre. Acho que é culpa de minha mãe. Desde pequena ela separava para mim, o menor pedaço de tudo quanto é alimento. Achava que não aguentaria comer mais. Mas sempre fui mingnon...
Ele parece ter fingido dar um riso frouxo o que fez Lígia desejar sumir dali por dez minutos. Em Língua Portuguesa isso deve ter um daqueles nomes estrambóticos de figuras de estilo, mas deixa pra lá. Melhor esquecer.
Desabafou que continuou, no entanto, pesquisando seu coração. Queria ver até onde ela agüentava encontros desastrosos. Até parecia real, mas não era. Definitivamente, aquele ser não estava interessado nela.
Lá no fim do encontro, triste além da conta, falou num tom marrom que era hora de partir. Ir para casa. Ele, alegremente disse que a tarde foi muito agradável. Agradável? Ela pensou: que bom. Pelo menos não disse “que bom que você já vai”, ou, “é tava na hora mesmo”.
Deveria parar de acreditar em encontros, mas não consegui ainda. Deixou escapar para mim. Senti pena de Lígia... Disse-lhe, para melhorar minha consciência, que em Semiótica isso deve ter nome, mas que naquele momento não tinha muita importância.
Lígia partiu, derramada, para casa. Suas pernas pesavam. O coração tamanho largo, pesava. As vistas enxergavam mal e pouco, mas avistou o ponto de ônibus. O caminho que muitas vezes percorrera sozinha, mais uma vez seria realizado da mesma igualita forma. O cobrador perguntou num tom cansado se não tinha trocado. Respondeu no mesmo tom que não. Até tinha, mas as mãos também estavam pesadas para realizarem o movimento de abrir a carteira e encontrar, sabe Deus onde, a moedeira.
Senti-me mal por não estar na cidade naquela semana. Poderia ter atendido o seu telefonema para minha casa, em busca de uma palavra amiga, confortadora, ou apenas de um par de ouvidos.
Um par de ouvidos sempre faz falta em momentos parecidos. A gente fala, o outro escuta até certo ponto. Depois, paramos para o silêncio cumprir a grande missão do que não sabemos esconder. O silêncio é o maior dos amigos para a maioria das ocasiões.
Ela decidiu que não iria mais encontrá-lo. Eu sabia que era mentira, que aquilo era da boca pra fora. Ela sempre ia até o fundo das histórias, principalmente das histórias de amor, mesmo que tudo sinalizasse para dar um basta, para não seguir, para... Nunca adiantou.
Ela seguia, irremediavelmente seguia... Talvez, por conta da grande resposta que procurava, a grande questão: Por que ninguém fica? Por que ninguém quer ficar?
Senti medo. Toda pergunta sem resposta dói, e minha amiga não suportaria chegar ao final daquela história, sem a tão desejada resposta. Pensei sem interromper Bete: tem pergunta que não merece ser respondida. Ou bem melhor, tem pergunta que não nos deveríamos fazer. Bete continuou me contando sobre Lígia e seu encontro desajeitado.
Lígia, então, decidiu que ficaria quieta por uns dias. Não ligaria, não mandaria e-mail, não respiraria. Conseguiu. Estava orgulhosa de minha amiga, estava conseguindo mesmo, duramente, a realização de suas promessas. Estava, já, quase curada. Mas eis que o moço não teve dó do coração de minha amiga e acenou de longe, sorrindo e garboso, com um par de olhos brilhantes. Eu, que estava ao lado de minha amiga, naquele ponto de ônibus lotado em dia de chuva, senti logo que ela sucumbiria... Quem não sucumbiria a tão bem disfarçados olhos e imenso sorriso (decorado) de enganar?
Já viram né? Ele chegou, disse umas improvisações. Disse que estava quase morto, que sentiu sua falta, que não sabia por qual razão não a havia procurado antes. E, por fim, implorou, quase, que fosse vê-lo em dia e lugar ardilosamente planejados. Ela disse sim.
Logo percebi que Bete deveria estar em casa durante um mês seguido. Certamente receberia uma ligação de Lígia, por ter sido mais uma vez, despreviligiada, em qualquer dia a partir daquele.
Lí-gi-a... Lí-gi-a... Você não aprende...

Solineide Maria de Oliveira

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