É Deus que a gente tem memória

Devia ser para sempre, mas não sei, parece maldição... O tempo vai levando as tradições... É Deus que algumas resistem. Quando não fisicamente, mas dentro de nós.

Parece ontem... A rua sendo enfeitada em véspera de São João.
Animação total em plena madrugada, nem o frio, nem o cansaço arrancavam o animo típico da data.
Minha mãe toda dona da satisfação em ver os filhos reunidos, unidos em prol da vida, numa diversão tão saudável. Ela sempre foi a mais alto astral nessas épocas, providenciando o milho ralado para a canjica, o amendoim e o licor de jenipapo.
O licor de jenipapo... Vinha primeiro da roça de painho, ou de tio Cravo, depois, das roças dos amigos dela, ou era algum tipo de presente dos vizinhos, que já sabiam da boa mão para licor, que ela sempre teve (e tem).
Em tempo! E que mão abençoada para todo tipo de comida, quase todas, e, no São João, parecia (em meu pensamento de criança) havia um quesito à mais naquelas mãos, para deixar tudo o que concebia, tão mais saboroso.
À essa altura já havíamos confeccionado as bandeirolas, balões e correntes, nas noites anteriores. Todos ajudavam, uns davam dinheiro, para compra de cordões e plásticos, e papéis coloridos, outros com a feitura das bandeirolas, e do restante dos enfeites.
Com a modernidade, as bandeirolas já vinham prontas, era só costurá-las nos cordões, mais prático, mas igualmente salutar.
Nada havia que não nos animasse, a rua havia de estar enfeitada.
Para os pequenos, a madrugada era muito comprida, então, vencidos pelo sono dormíamos logo, ao som das músicas juninas, embalados pelas vozes do pessoal arrumando a rua em véspera de São João. Os sonhos eram coloridos, enfeitados de balões e animados por traques e bombinhas, e busca-pés...
Quando amanhecia, pelas janelas avistávamos as fileiras de bandeirolas enfeitando tudo, até o fim da rua.
Quando o vento batia, fazendo dançar todas elas, num compasso que parecia ensaiado, dava vontade de danças e de soltar traque e de acender logo a fogueira, mas era preciso esperar entardecer.
Os quitutes estavam prontos lá pelas seis da tarde, faltava arrumá-los na mesa na cozinha; na sala os móveis eram impelidos para bem perto das paredes.
Decidido, painho colocava as caixas de som na janela da sala, separava os discos (bolachões) de Luiz Gonzaga, Dominguinhos, Marinês e sua gente, e outros, preferidos dele.
Quando vestíamos as roupas novas, de Festa Junina, a festa tomava então o corpo, a alma já estava toda imbuída de São João.
O som era um três em um, que tocava a noite inteira, sem fazer feio, repetia-se muito, o Trio Nordestino, outra pérola, que meu pai e minha mãe sempre gostaram.
Fica difícil contar direito, sobre a alegria daqueles dias, naqueles anos a fio... Pois tem coisas que apenas o coração saberia descrever com perfeição, mas ele, bombeando a vida imensamente, segue sentindo.
As feições de alegria de todos e as crianças e seus traques e bombinhas, busca-pés... Os tições da fogueira em chama que queimava até as tantas; minha mãe e meu pai animadíssimos.
Vez por outra uma ameaça de dançarem juntos, era raro, acho que tinham um pouco de vergonha, coisa dos mais velhos, mas dançavam uma ou outra música.
Algumas vezes um bêbado aparecia de alguma rua vizinha, embriagado também, pelo licor, mas eram mansos, ou dormiam, ou acabavam dançando sozinho até curarem a bebedeira.
Chegava uma hora da festa, em que todos trocavam os bolachões no três em um, isso fazia a festa seguir sem muitos minutos de descanso para os dançantes.
O frio? Um adereço para festa.
Cansaço? Nenhum.
É Deus, que a gente tem memória...

Solineide Maria - Junho de 2003
Para meu pai e minha mãe.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Análise do poema Olha Marília, As Flautas Dos Pastores - de Bocage

Poema para Pedro

Abacate